Aquilo que parecia ser uma simples visita para conhecer uma possível nova residência acaba se tornando uma viagem fabulosa com destino a um mundo onde o incerto é via de regra o mais plausível e aceitável. Incrível desde a primeira a cena até o último segundo da história, a Viagem de Chihiro é sim um desenho, mas está longe de ser mero entretenimento para garotos apreciadores de chicletes e pirulitos.
A Viagem de Chihiro é um tipo de história que fascina rapidamente, e envolve o espectador em uma atmosfera fantástica onde os sonhos são a essência da própria realidade. Chihiro, no auge dos seus 10 anos de idade, vai no banco de trás divagando em pensamentos, enquanto Akio, o pai, acelera em direção do tal endereço a ser visitado, na companhia de Yuko, a mãe. Mas de repente, um neolito, monumento feito de pedra, impede a passagem do carro, bem na entrada de um túnel.
Os pais decidem descer e adentrar o túnel pra conhecer, mas Chihiro resiste imensamente, até mudar de idéia quando vê que os pais estão dispostos a deixá-la sozinha caso se negue a ir. Aqui começam a se esboçar os primeiros contornos desse reino do fantástico, em luzes e formas misteriosas que brotam do interior de um salão onde o túnel foi dar. Janelas filtram os raios do sol e deixa passar apenas a mais fina luz, brilhando em algumas poucas cores, vívidas de intensidade.
Como que movido por um cheiro, Akio, o pai de Chihiro, segue o próprio nariz e vai subindo montanha acima, até levar a família a um lugar que mais parece um parque, com cara de cidade abandonada. Mas no meio de todo aquele abandono, alguma coisa funciona bem, tão bem quanto o olfato de Akio, que tomado por um impulso esfomeado encontra a tal banca de comida que o fez chegar até ali. Nenhum sinal de qualquer ser ou funcionário, mas uma mesa com mil pratos prontos e quentes domina o lugar.
Sem sequer pensar na contradição, os pais de Chihiro se põem a comer. Chihiro é convidada, mas novamente se recusa, e avisa que “eles não vão gostar de saber que estão comendo a comida deles.” Ao passo que decide deixar os pais se afogarem na comida e vai dar um passeio. Logo ela encontra uma ponte, e mais em frente uma casa. Daqui pra frente, a história de Chihiro mudaria por completo. Se uma menina inexperiente e cheia de medos está prestes a adentrar aquela porta, outra menina completamente diferente, superada e trabalhada, está prestes a sair do outro lado.
Meio que perdida entre a surpresa e admiração, observando um trem que passava lá embaixo da ponte, Chihiro derrepentemente é surpreendida por um garoto um pouco mais velho. Seu nome: Haku. É um personagem estratégico da trama e um dos habitantes mais ilustres do lugar. Alerta a Chihiro que a noite está caindo, e que ali não é nada conveniente para uma menina como ela. Manda ela de volta para onde estão seus pais e fala pra ela tomar o caminho de volta, antes que escureça.
Mas quando ela os encontra já está praticamente de noite, e as luzes da cidade supostamente abandonada começam a se acender. Seus pais já não são mais humanos, se tornaram porcos de tanto comer. “Comeram tanto que esqueceram que são humanos”, explica Haku. Que também esclarece a Chihiro que se ela quer sair desse lugar e libertar os pais dela desse sofrimento, vai ter que trabalhar.
“Peça a ele (Kamaji) pra arranjar um trabalho pra você, e se ele recusar você vai ter que insistir. Se você não trabalhar neste lugar, Yubaba vai te transformar num bicho.” Haku deixa as coisas bem claras pra Chihiro, pra evitar qualquer desentendimento. “Você tem que conseguir um trabalho. Mas tem que insistir, assim vai ter uma chance.” Então explica que o caminho do ouro passa primeiro por Kamaji, o mestre das fornalhas. “Escravo da caldeira que aquece os banhos” é como ele próprio se entitula, mas com seus seis braços ele dirige um dos trabalhos mais importantes do lugar: manter a caldeira acesa, fervendo, pros banhos permanecerem quentinhos.
Que banhos seriam esses? E por que Kamaji é um mestre? Bem, o lugar onde a história se passa é uma casa de banhos onde 8 milhões de deuses vão para relaxar. Todas as espécies de formas e cores formando uma comitiva divina sem limites de corporalidade. São frequentadores assíduos que fazem por merecer o título de clientes vip dos serviços de relaxamento da casa de banhos de Yubaba.
E Kamaji é um mestre porque cuida quase sozinho, quase por que tem a ajuda de umas criaturinhas super especiais que se alimentam de estrelas coloridas, de um dos setores mais estratégicos da casa, a fornalha central, e ainda tem tempo para organizar com maestria as peças do ambiente que o cerca. Mais do que um simples escravo, digamos que ele tem na história um misterioso papel de alguém que é sempre mais do que parece.
Ao ver Chihiro causando confusão entre seus ajudantes, porque decidiu ajudar um, causando uma mini rebelião dos outros, que queriam também ver seu trabalho facilitado, Kamaji alerta: “Não pode tomar o trabalho dos outros.” E logo depois a ajuda, quando chega Lyn, uma das trabalhadoras da casa. Ele manda Lyn levá-la a Yubaba, proprietária do estabelecimento, e pra conseguir isso inventa que Chihiro é sua neta, demonstrando toda sua clareza, compaixão e poder de facilitar as coisas. “Se quiser trabalha precisa fazer um acordo com Yubaba”, diz Kamaji.
Antes de ir embora, Lyn também registra sua primeira lição: “Por acaso você agradeceu o Kamaji? Ele te ajudou, não ajudou?” A Viagem de Chihiro é um filme que trata de amor, sabedoria, formas de lidar com a vida e com as coisas que se apresentam. E o que é mais especial é a estética e o movimento cinematográfico de Hayao Miyazaki, diretor de uma autêntica obra anime que não deixa a desejar a nenhuma película. Um filme que ultrapassa o limite do bom entretenimento e transborda sobre o campo da experiência única, onde cada personagem ou cena tem a capacidade de registrar com exatidão um pedaço do que vemos como o mundo real.
Um filme que surpreende por suas estripulias imaginativas. Como no caso da transfiguração de seres, quando descobrimos que Haku também é um dragão branco, de enorme força em um mundo suprahumano. E que Yubaba, a feiticeira, é também uma ave, que sai da casa de banhos ao amanhecer alçando vôo pela janela, mas volta todo entardecer, para tomar conta de seus divinos convidados. Outro detalhe escalafobético no filme é a tremenda cabeça de Yubaba. Se há algo que não se pode deixar passar despercebido nesse belo desenho é a incompatibilidade da cabeça de Yubaba com o seu corpo, uma absurdidade sem tamanho.
Apesar do filme tratar de Chihiro, Yubaba atrai muita atenção, afinal carrega junto a si uma família no mínimo curiosíssima. Um bebê gigante que tem o pé do tamanho da cabeça da mãe, e quando chora faz toda casa de banho tremer e ficar a um fio de cair aos pedaços, e uma ave chamada Valefor, que é como uma minicópia de Yubaba, mas com asas de morcego, e a segue como uma fiel escudeira.
Além da excêntrica família de Yubaba, o filme nos traz um outro inusitado personagem: o Sem Rosto. Trata-se de um monstro sem qualquer expressividade facial, com o sugestivo poder de se tornar aquilo o que come. Outra particularidade do Sem Rosto é a imensa admiração que ele nutre por Chihiro, a quem vê como um ser digno de reverências.
A Viagem de Chihiro é um mundo de surpresas após surpresas, comprovando que a realidade sempre está disposta a revelar novos horizontes. Um caminho de descobertas sobre a própria vida, onde o próximo segundo é sempre um desdobramento do relacionamento com o agora. Hayao Miyazaki talvez não saiba o bem que fez ao criar A Viagem de Chihiro. Mas que fez, fez. Um bem muito bem feito